domingo, setembro 18

Primeira Vez

Aquele estava sendo um dia muito diferente. Não consegui assistir aos meus desenhos, nem pude brincar com meus brinquedos. Eu tive que ficar sentado em fileiras, prestando atenção em tudo o que a professora estava dizendo. E ela falava bastante, muita coisa eu nem entendia: falava de letras, umas famílias que eu nunca tinha ouvido falar antes, números... Era difícil me concentrar nela com tanta gente legal em volta pra poder brincar.
Na verdade, ela também parecia ser legal. Mas só parecia, minha mãe é muito mais legal do que ela. E ela não era criança. Por mais que ela tentasse, ela nunca seria tão legal como uma criança. Eu acho que ela não sabe de nada, só finge saber uma porção de coisas, e fica aí falando sem parar, querendo que a gente preste atenção em todas as bobagens que ela fala. Aposto como ela não sabe nada de video-game, desenhos ou boas brincadeiras. 
Só que depois ela falou uma coisa que chamou minha atenção: pintar. Ah, eu adoro pintar! Aquela mulher, a professora, passou entregando um pedaço de papel e disse que teríamos que pintar só o que ela falasse. Isso tirou um pouco da graça, porque eu gosto de pintar tudo. Uma vez pintei o livro todo do meu pai de verde e azul, ficou lindo! Eu acho que meu pai não gostou muito, porque ele disse que aquilo não era coisa pra eu brincar, mas ficou muito bonito. Uma página azul, outra verde, depois azul, outra vez verde... Deu uma trabalheira danada, mas foi um excelente trabalho. Outra vez eu pintei a parede da sala com giz, bem colorido. Dessa vez quem não gostou foi a mamãe. Acho que ela teria gostado mais se eu tivesse feito um desenho dela no lugar.
Bom, mas no papel que a professora entregou não tinha desenho, só tinha o meu nome escrito com uma letra gordinha. Eu já sabia ler o meu nome, só não sei como a professora sabia que esse era meu nome. Vai ver ela tinha algum superpoder especial e não quis contar pra gente.
Depois que ela entregou pra todo mundo ela disse pra gente pegar o estojo de lápis de cor na mochila e pintar só a letra "A" do nome, porque essa era a letra que estava explicando aquele dia. Eu peguei meu estojo com cuidado, abri e senti aquele cheiro gostoso que só o lápis de cor pode ter. Escolhi o lápis azul, porque essa é a minha cor preferida, e olhei de novo pro papel. Quando eu fui começar a pintar lembrei do que a professora tinha acabado de falar. Eu sabia que no meu nome não tinha aquela letra, olhei de novo só para conferir e realmente não tinha nenhum "A" ali. Então eu não teria nada pra pintar.
Coloquei o lápis de volta no estojo bem devagar, olhando pro pedaço de papel, bastante triste. Olhei em volta e todas as outras crianças estavam rabiscando o papel, felizes da vida. Voltei a olhar pro meu papel e fiquei lendo o meu nome vári...
- Ei, psiu.
Olhei pro lado e tinha uma garota me olhando. Ela tinha uns olhos bem bonitos, pareciam duas bolinhas de gude. As bolinhas de gude mais bonitas que eu já vi na minha vida, mais bonitas do que qualquer uma da minha coleção! Eu fiquei olhando pra ela, olhando mais pras bolinhas de gude que ela tinha no lugar dos olhos, e depois olhei pra boca. Ela estava sorrindo, e tinha um sorriso bem bonito, bem feliz, daqueles que dá vontade de sorrir também. Eu já estava começando a sorrir de ver aquele sorriso engraçado quando a boca da menina abriu e voltar a falar:
- Oi, eu sou a Michelle.
A garota dos olhos de bolinha de gude se chamava Michelle. Nome bem bonito, combina com o sorriso que dá vontade de sorrir e os olhos que dão vontade de brincar. Ela estava sorrindo de novo, e era tão bonito ver essa menina Michelle sorrir! Mas ela já estava abrindo a boca de novo para dizer mais alguma coisa:
- Acho que você não precisa ficar triste, no meu nome também não tem nenhuma letra "A".
Mais um sorriso sorridente apareceu na boca da menina, e dessa vez eu consegui sorrir também, olhando dentro daquelas duas bolinhas verdes de gude.
Não tinha motivos pra ficar triste, no nome dela também não tinha a letra "A".

sexta-feira, maio 6

Maria era parecida com Ana, que era amiga de Mariana e andava com Joana, filha daquela Beltrana sem lenço e sem documento, enterrada na vala 426, nunca visitada por ninguém.

sexta-feira, fevereiro 12

Interlúdio

Acontece que naquele dia eu comecei com as colheres. E eu nunca começo com elas.

terça-feira, fevereiro 2

4 in the Morning

O visor luminoso do relógio no meu quarto dizia que já passava das 4h. Se o sono não tinha aparecido até agora, não seria nas próximas horas que ele daria o ar da graça.

Sentei na cama e coloquei um cigarro na boca. Tive um namorado que dizia "isso ainda vai te matar um dia". Ri comigo mesma lembrando dele. Engraçado que sempre fomos muito opostos, e ele nem sequer fazia o meu tipo. Na verdade, nem lembro como tudo começou. Lembro de como terminou. Acabou com um recado na geladeira dando adeus, dizendo que caminhávamos em trilhas diferentes, embora paralelas. E que o caminho dele agora dobrava a esquerda. Ele sempre foi meio comunista, mesmo.

Acendi o cigarro e dei uma tragada. Fiquei sem ter notícias dele durante um bom tempo, o rapaz simplismente sumiu. Alguns anos depois, vendo TV, mostrou um conflito entre a polícia e uns manifestantes. Foi tenso, bastante pancadaria, tiros, vários feridos e uns dois ou três mortos. Quando mostraram as fotos das vítimas no noticiário, imediatamente o reconheci: estava um pouco envelhecido, com o cabelo mais comprido, a mesma expressão lunática e encantadora, os mesmos olhos intrigantes. Acho que foi isso que fez com que eu me apaixonasse por ele; aqueles grandes olhos profundos que sempre me deixavam sem reação, sem ter para onde correr.
Irônico o fato dele ter morrido antes, sem nunca ter se entupido de nicotina ou bebido demais, levando uma vida politicamente correta e cheia de ideiais. Os seus ideias é que acabaram levando você pro caixão, meu querido. Acho que às vezes sinto a sua falta.

Levantei e fui abrir a janela. A cidade não silenciava nem a essa hora da manhã. Minha mãe dizia que eu jamais me acostumaria com tanto barulho, com tanto trânsito, tanta gente. Confesso que às vezes eu gostaria de acordar bem longe daqui, num lugar em que ninguém me conhecesse, onde não houvesse tanto barulho, com menos gente... Mas logo em seguida eu lembro o quão tediante seria e eu agradeço o dia em que eu parei de dar ouvidos a ela e segui meu caminho, mesmo que isso tenha me custado alguns anos de silêncio.
O preço da liberdade, eu diria. Nada vem de graça.

Olhei pro quarto e vi a quantidade de coisas desnecessárias que eu acumulei em poucos anos. Pilhas de revistas em um canto, livros mal organizados na estante, um quadro levemente torto na parede, uma escrivaninha entupida de papéis, alguns CDs, post its colados na parede... Aproximei-me para ler alguns, e em um deles estava anotado o endereço de uma festa que eu fui convidada para ir há mais de um ano. Lembro-me com clareza daquele dia. Preferia não lembrar, preferia não ter ido.
O post it poderia ter descolado da parede, voado para debaixo da cama. Então não saberia como chegar no lugar, acabaria ficando em casa assistindo a "Uma Linda Mulher" com pipoca e sorvete, teria ido para cama cedo, tido alguns sonhos sem sentido dos quais não lembraria na manhã seguinte e acordaria em mais um sábado como tantos outros.
Mas nada disso aconteceu.

Amassei aquele pequeno papel amarelo e joguei no lixo, que ainda estava vazio. Olhei pro computador e percebi que ainda estava ligado, baixando algumas coisas. Dois emails recebidos, mas só um importante. De um amigo que não via há muito tempo, mas que sempre estivera presente nos momentos cruciais da minha vida. Inclusive naquela festa. Ele dizia que estava bem, que sentia saudades, que deveríamos marcar alguma coisa qualquer dia desses. Engraçado que todos ficamos de marcar "alguma coisa qualquer dia desses", mas esse dia raramente chega. A maioria das pessoas diz isso mais por educação do que por vontade de marcar "alguma coisa qualquer dia desses", só que com ele era diferente. Nós realmente marcaríamos "alguma coisa qualquer dia desses". Também sentia saudades dele; responderia com efeito amanhã de manhã.

Cocei a cabeça e fui para a cozinha. Acendi a luz, o gato abriu o olho pra ver quem era, mas voltou a dormir logo em seguida. Essa era a minha companhia diária, um gato chamado Lucifer Sam, que sempre fugia quando eu colocava Floyd pra tocar. A geladeira estava cheia de restos, meio pudim e uma caixa de leite. Copos para serem lavados na pia e um prato do jantar ainda descansava na mesa. Raios de sol já entravam pela janela, definitivamente estava tarde. Ou cedo. Depende do ponto de vista. Entretanto, não havia com o que me preocupar. Essa é uma das melhores vantagens de se trabalhar em casa.
O café da cafeteira estava frio, joguei fora e comecei a preparar um novo. Não há nada melhor do que café recém feito. Aliás, não há nada melhor do que café.

O sono, realmente, não apareceu. Enfim, um novo dia começa.

terça-feira, janeiro 19

Invariável

Eu sei que vocês, digníssimos leitores, estão com saudades de minhas palavras. Para ser franca, também estou com saudades. De escrever e de ler o que vocês tem a dizer (mesmo que muitos passem e nem deixem sinal de que vieram).
Mas sabe o que tem me impedido de vir aqui, sentar e redigir minhas humildes palavras? O mesmo. Sim, o mesmo. Toda vez que eu tento escrever algo, é sempre mais do mesmo. Às vezes até consigo fazer o mesmo sob um ponto de vista diferente, mas ainda é o mesmo.


Talvez seja a monotonia, a rotina, o tédio. Tudo pode ser a resposta. Tudo é a resposta.
E sabe o que é mais curioso? É que eu gosto da mesmice. Pelo menos dessa mesmice, que me obriga a escrever sempre do mesmo assunto, a ir e voltar sem sair do lugar, a imaginar muitas coisas que sempre acabam num lugar comum.
Nessas horas você percebe que pode ser mais de uma pessoa num único corpo, e que dois formando um é ainda melhor; que deitar e não dormir pode ser mais reconfortante do que horas de sono cheios de sonhos vazios.
Mas sonhos preenchidos tem um poder inimaginável, mesmo sendo só sonhos. E quem foi que desacretidou no poder dos sonhos? Sonhos jamais serão "só sonhos". São sonhos. E sonho sonhado junto é realidade.

Poderia sim compartilhar tal mesmice com vocês, prezados leitores, mas não creio que fosse ser do agrado da maioria. Na verdade, nem sei se da minoria. Tanto faz. Creio que a minoria já saiba (ou tenha uma vaga ideia) do que falo. E a maioria pode fantasiar à vontade com aquilo que mais lhe agradar.

Portanto, encerro por aqui.
Bons sonhos.