sexta-feira, fevereiro 12

Interlúdio

Acontece que naquele dia eu comecei com as colheres. E eu nunca começo com elas.

terça-feira, fevereiro 2

4 in the Morning

O visor luminoso do relógio no meu quarto dizia que já passava das 4h. Se o sono não tinha aparecido até agora, não seria nas próximas horas que ele daria o ar da graça.

Sentei na cama e coloquei um cigarro na boca. Tive um namorado que dizia "isso ainda vai te matar um dia". Ri comigo mesma lembrando dele. Engraçado que sempre fomos muito opostos, e ele nem sequer fazia o meu tipo. Na verdade, nem lembro como tudo começou. Lembro de como terminou. Acabou com um recado na geladeira dando adeus, dizendo que caminhávamos em trilhas diferentes, embora paralelas. E que o caminho dele agora dobrava a esquerda. Ele sempre foi meio comunista, mesmo.

Acendi o cigarro e dei uma tragada. Fiquei sem ter notícias dele durante um bom tempo, o rapaz simplismente sumiu. Alguns anos depois, vendo TV, mostrou um conflito entre a polícia e uns manifestantes. Foi tenso, bastante pancadaria, tiros, vários feridos e uns dois ou três mortos. Quando mostraram as fotos das vítimas no noticiário, imediatamente o reconheci: estava um pouco envelhecido, com o cabelo mais comprido, a mesma expressão lunática e encantadora, os mesmos olhos intrigantes. Acho que foi isso que fez com que eu me apaixonasse por ele; aqueles grandes olhos profundos que sempre me deixavam sem reação, sem ter para onde correr.
Irônico o fato dele ter morrido antes, sem nunca ter se entupido de nicotina ou bebido demais, levando uma vida politicamente correta e cheia de ideiais. Os seus ideias é que acabaram levando você pro caixão, meu querido. Acho que às vezes sinto a sua falta.

Levantei e fui abrir a janela. A cidade não silenciava nem a essa hora da manhã. Minha mãe dizia que eu jamais me acostumaria com tanto barulho, com tanto trânsito, tanta gente. Confesso que às vezes eu gostaria de acordar bem longe daqui, num lugar em que ninguém me conhecesse, onde não houvesse tanto barulho, com menos gente... Mas logo em seguida eu lembro o quão tediante seria e eu agradeço o dia em que eu parei de dar ouvidos a ela e segui meu caminho, mesmo que isso tenha me custado alguns anos de silêncio.
O preço da liberdade, eu diria. Nada vem de graça.

Olhei pro quarto e vi a quantidade de coisas desnecessárias que eu acumulei em poucos anos. Pilhas de revistas em um canto, livros mal organizados na estante, um quadro levemente torto na parede, uma escrivaninha entupida de papéis, alguns CDs, post its colados na parede... Aproximei-me para ler alguns, e em um deles estava anotado o endereço de uma festa que eu fui convidada para ir há mais de um ano. Lembro-me com clareza daquele dia. Preferia não lembrar, preferia não ter ido.
O post it poderia ter descolado da parede, voado para debaixo da cama. Então não saberia como chegar no lugar, acabaria ficando em casa assistindo a "Uma Linda Mulher" com pipoca e sorvete, teria ido para cama cedo, tido alguns sonhos sem sentido dos quais não lembraria na manhã seguinte e acordaria em mais um sábado como tantos outros.
Mas nada disso aconteceu.

Amassei aquele pequeno papel amarelo e joguei no lixo, que ainda estava vazio. Olhei pro computador e percebi que ainda estava ligado, baixando algumas coisas. Dois emails recebidos, mas só um importante. De um amigo que não via há muito tempo, mas que sempre estivera presente nos momentos cruciais da minha vida. Inclusive naquela festa. Ele dizia que estava bem, que sentia saudades, que deveríamos marcar alguma coisa qualquer dia desses. Engraçado que todos ficamos de marcar "alguma coisa qualquer dia desses", mas esse dia raramente chega. A maioria das pessoas diz isso mais por educação do que por vontade de marcar "alguma coisa qualquer dia desses", só que com ele era diferente. Nós realmente marcaríamos "alguma coisa qualquer dia desses". Também sentia saudades dele; responderia com efeito amanhã de manhã.

Cocei a cabeça e fui para a cozinha. Acendi a luz, o gato abriu o olho pra ver quem era, mas voltou a dormir logo em seguida. Essa era a minha companhia diária, um gato chamado Lucifer Sam, que sempre fugia quando eu colocava Floyd pra tocar. A geladeira estava cheia de restos, meio pudim e uma caixa de leite. Copos para serem lavados na pia e um prato do jantar ainda descansava na mesa. Raios de sol já entravam pela janela, definitivamente estava tarde. Ou cedo. Depende do ponto de vista. Entretanto, não havia com o que me preocupar. Essa é uma das melhores vantagens de se trabalhar em casa.
O café da cafeteira estava frio, joguei fora e comecei a preparar um novo. Não há nada melhor do que café recém feito. Aliás, não há nada melhor do que café.

O sono, realmente, não apareceu. Enfim, um novo dia começa.